sábado, 4 de abril de 2009

Pois é. Quem leu minha crônica "O Porre" poderá agora comparar com o tipo de conto que o Augusto escreve, pois vou postar abaixo um dos que eu mais gosto.

O contexto foi o seguinte: em sala de aula, na faculdade, recebemos a tarefa de escrever um conto em cima de alguns dados.

O sequestro de um garoto, um bilhete com pedido de resgate, 2 personagens secundário, sendo um ex policial e uma vidente.

Quando o Augusto começou a ler a minha narrativa, logo nas primeiras linhas ele disse: "os 2 se casam no final?". Grrrr...

O conto do Augusto ficou simplesmente ótimo, com um gostinho de "quero mais".

Apreciem:

"Amadores

- Ei... Peraí.
- Cala a boca, porra!
- Me solta – tentei reagir, mas enfiaram aquele saco fedido na minha cabeça, levei um cascudo e amuei, quietinho, sem dizer palavra.

Era uma mulher e um homem, não que tenha visto algo, foi tão rápido, senti os peitos fofos dela no rosto quando me pegaram. E depois ela falando, falando – e como falava o diabo da mulher... – o sujeito só respondia com um “huumm” ou outro de vez em quando. Cheiro de fumaça de cigarro vagabundo. Os pneus devorando asfalto. Minha cara enfiada no estofamento do banco de trás do carro por um tempo que me pareceu uma eternidade.

De que me adiantava ali ter aprendido tocar piano com cinco, ter descoberto Nietzsche numa das prateleiras de baixo da biblioteca do vovô com seis e, com sete já estar vencendo o velho, que havia sido campeão estadual de xadrez, um dos dez mais da liga brasileira, em partidas que não excediam meia hora? De que adiantava estudar agora naquele colégio de frescos? Garotos especiais, bah, uma piada; punheteirinhos pedantes, todos nós, isso sim, dominando álgebras e línguas, mas sem coragem para chegar na filha da vizinha, bolinar a empregada, esfolar um gato, roubar duas latas de cerveja da geladeira e fazer uma festa, sei lá, fazer uma dessas coisas que devem ser importantes de se fazer antes que venha a velha ceifeira com a foice enferrujada dela e, zás: adeus mundo cruel(...).

- Greison?
- Que vaca!, não fala meu nome – retrucou o homem ao volante, talvez cansado só dos “huns” dele; há muito estávamos rodando sem chegar a lugar algum, e a mulher, meu Deus, falando.
- Esqueci.
- Vê se não esquece mais, entendeu? Já me chamou de Doris, de Silva, de Greison; “Greison” ainda por cima, não Gleison, daqui a pouco vai dar o número da minha identidade e endereço, e eu vou ter que apagar o moleque adiantado.
Como se o camarada fosse um poço de inteligência... Socorro! Como se também não houvesse entregado o serviço. Ela dizendo que o ladrãozinho que o Silva matou o acompanhava sempre, que podia vê-lo, que estava ali, no carro, todo ensangüentado, que aquilo era mau sinal; e ele:

- Deixa de ser maluca, Zora, esse negócio seu aí de vidente não cola, se colasse cê não taria com esse calão no umbigo de encostar no balcão da banca pra ganhar a miséria que ganha, acertava os números da loteria. Além do mais eu era da polícia na época, tava a trabalho.
- Mas eu tô vendo, olha ali, ó, no banco de trás, nos pés do garoto.
- Huumm.

Puta-que-pariu, se quer saber, é numa hora dessas que quem tem cu tem medo até de ter medo. Não me mexi. Continuei me fingindo de morto; mas apesar do fedor do maldito saco, do galo latejando na moleira e da claustrofobia, aquele grilo não deixava de cricrilar dentro da minha cabeça, estabelecendo conexões. Um animal intelectual, isso é o que eu era, e não podia me furtar dessa sina.

"Seu filho está em nosso poder – dizia o bilhete de resgate que ela leu uma vez em voz alta, pra conferir, e eu já decorei. Se quiser o menino de volta siga as instruções e ponha 500 mil dólares numa mala preta e deixe atrás de banca de jornal da estação de trem às 10H50. Pegue o trem das 11H. Se ficar alguém vigiando a mala, o menino morre!".
Podia visualizar a mala, o dinheiro, as manchetes nas páginas policiais: “Seqüestrado P.C. Junior, de doze anos, filho prodígio do empresário...”; podia visualizar a cena toda, menos meu pai andando de trem metido num daqueles ternos engomadinhos dele, com gravata, colete e tudo. Também o português com que havia sido escrito o bilhete era surpreendente para o casal, o que deixava claro o envolvimento de uma terceira pessoa – cricrilava o grilo –, e a língua presa da mulher na hora do “Greison”, aquele negócio de calo no umbigo de trabalhar por merrecas numa banca... Dona Fátima, ou melhor, Fátima Zoraide, a jornaleira viciada em chocolate da esquina do colégio; quem mais? Quantas vezes não comprei revista ali? Era viver para contar. Mas com aqueles dois já seria sorte se encontrassem o caminho que levava cativeiro.

- Vira à direita na próxima.
- Não gosto de palpite quando tô dirigindo.
- Já é a terceira vez que a gente passa por essa porteira azul.
- Huumm.
- Vira!, pô, tá surdo.
Amadores...

Escrito por Augusto Firorin e postado em 18/10/2004 no blog Birigui Blues.

http://biriguiblues.zip.net/arch2004-10-01_2004-10-31.html"

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