sexta-feira, 19 de novembro de 2004

Recebi essa crônica por e-mail.
O Homem que sabia djavanês.

Eu tinha chegado fazia pouco ao Rio de Janeiro e estava literalmente na miséria. Vivia fugindo de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro. Até que um dia, lendo "O Globo", deparei com este anúncio: "Precisa-se de um professor de djavanês".

A audição das músicas de DJ Avan sempre provocou em mim puro mal-estar físico. Mas, enfim, precisava de grana e decidi fazer o possível para vencê-lo. Naquela semana, fui a todos os barzinhos com música ao vivo da cidade. Perdi a conta de quantas vezes escutei "e o meu jardim da vida ressecou, morreu" ou "amar é um deserto e seus temores".

Foram sete dias de tortura; contudo, saí deles com o djavanês na ponta da língua. Em vez de mandar meu currículo, achei que conviria visitar o endereço indicado no anúncio. Era um tríplex de cobertura, decorado com muito dinheiro e mau gosto ainda maior, num dos bairros mais caros do Rio.
Apresentei-me como professor de djavanês e, após ser submetido a inquérito pelos empregados, fui levado à presença do patrão, o doutor Albernaz. Ele me recebeu com um sorriso visivelmente irônico.
- Então o senhor é professor de djavanês, hein?
- Sim, sou. Formado em djavanês e com mestrado emberegüê. Tive dez com louvor na minha tese sobre a influência de Carlinhos Brown na obra de James Joyce.

A tese, obviamente, não existia, mas o doutor Albernaz pareceu acreditar na conversa.
- Então, só o senhor pode me ajudar. Ouça isto, porfavor - e pôs nas minhas mãos uma coletânea do DJ Avan em CD. Ao notar minha cara de ponto de interrogação, ele contou sua história:
- Pouco antes de morrer, meu pai me entregou esse CD e disse: "Filho, tenho certeza de que DJ Avan canta coisas muito profundas, mas ouvi suas músicas durante anos e nunca consegui entender porra nenhuma. Só podem ser segredos iniciáticos transmitidos da maneira mais hermética possível. Descubra o significado e você obterá a chave da felicidade."

O doutor Albernaz abriu o encarte do CD e me mostrou uma das letras:
- Obi, obi, obá. Que nem zen, czar. Shalom Jerusalém, z'oiseau'. O que é isso?

Eu estava tenso com a pergunta do doutor Albernaz. Tantas músicas do DJ Avan e o velho tinha de querer saber o que significava a letra de "Obi"? Desgraçado. Se ainda fosse aquela do "o amor que é azulzinho", mas era tarde. Ele tinha os olhos fixos em mim: queria respostas. Todo o sucesso da minha empreitada dependia de uma explicação convincente e imediata. De repente, uma idéia. Começo:
- Veja bem. "Obi" é certamente uma referência a Obi-Wan Kenobi, o sábio de "Guerra nas Estrelas" interpretado por sirAlec Guinness. "Obá", por sua vez, remete a "Djobi Djobá", sucesso dos Gipsy Kings. DJ Avan buscou contrastar o lado luminoso e britânico da força com os mistérios nômades da alma cigana.
Continuei:
- A mesma tensão dialética pode ser verificada no verso subseqüente, que nem "zen, czar": a contemplação espiritual dos monges budistas e o poder absoluto dos czares. Perceba como tese e antítese se resolvem lindamente na síntese do verso seguinte: "Shalom Jerusalém" é a paz do espírito na divina cidade. É ela que faz a alma se elevar aos céus, como um pássaro ("z'oiseau").

Os olhos do doutor Albernaz se arregalaram enquanto eu falava. Dois segundos depois de eu terminar, ele gritou:
- Que maravilha! Sabia que havia algo de muito profundo nessa letra! O senhor é um gênio da hermenêutica, um mestre do djavanês!

Passei a tarde inventando explicações para todas as outras letras do CD - "Açaí Guardiã...", "Kremlin-Berlim-pra-não-dizer-Tel-Aviv...", "índio cara-pálida cara de índio...".
Citei Joyce, Pound, Oswald, Glauber, Zé Celso, Hélio Oiticica e Odair Cabeça de Poeta: name-dropping é comigo mesmo.
Daí por diante, minha ascensão social estava garantida. Eu era o único intelectual do país capaz de traduzir a transcendência da linguagem de DJ Avan. Tinha prestígio acadêmico e subsídio do Ministério da Cultura; gostosíssimas estudantes de lingüística rasgavam as roupas e se atiravam aos meus pés. Mas troquei tudo por um violão, sandálias de couro cru e um penteado novo. Mudei até meu nome graças ao djavanês:

Hoje me chamo Jorge Vercilo e sei que "nada vai me fazer desistir do amor"...

Estou ouvindo Djavan - Eu te devoro.

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